quarta-feira, 22 de julho de 2009

Poema - Saga da Amazônia

Da lavra do compositor paraibano Vital Farias, a música Saga da Amazônia é talvez a melhor síntese da guerra nada silenciosa e desigual travada na floresta entre a cobiça e o sentido de preservação das espécies. É certo que o tema inspirou centenas de compositores, mas da discografia ao alcance essa emerge como símbolo de cantoria a desafiar com versos cortantes a ganância e o desprezo ao homem amazônida.

Na música de Vital, a Amazônia é palco de conflitos já contados, mas não se tem conhecimento, numa única composição, de texto tão denso e revelador da variedade de tensões e mazelas que a cercam. Na canção, desfilam mitos amazônicos, devastação à flora e à fauna, genocídios indígenas, assassinatos na luta pela posse da terra, investimentos predadores de grandes projetos extrativistas e a internacionalização de imensas áreas pelo poder do capital internacional. Desfila, porém, sobretudo, um apelo à vida.

TEXTO: Euclides Farias

"No lugar que havia mata, hoje há perseguição/Grileiro mata posseiro, só pra lhe roubar seu chão/Castanheiro, seringueiro já viraram até peão/Afora os que já morreram como ave de arribação/Zé de Nana tá de prova/Naquele lugar tem cova, gente enterrada no chão...", canta Vital, num arrebatador testemunho à história.

Função social da arte, a música-denúncia de Vital não tem ranços nem faz coro a cantilenas de ongs secretamente subvencionadas por laboratórios farmacêuticos e cosméticos. Está focada no drama humano, a cada árvore que tomba, a cada bicho que morre. "Se a floresta, meu amigo, tivesse pé pra andar, eu garanto, meu amigo, o perigo não tinha ficado lá", aposta o cantador.

É sábia por não advogar à Amazônia a condição de santuário, por cuja redoma os caboclos enxergarão contemplativamente a terra e os rios intocáveis. O artista quer a floresta e as águas a serviço da prosperidade medida, porque tudo ali é finito. O que não quer, deixa claro, é a Amazônia como almoxarifado. E reage, sem precisar dizê-lo senão pela negação à dor, a cínicos pretextos que soam tão verdadeiros quanto os cantos de sereia. Se a Amazônia é hiléia, última fronteira, pulmão do mundo ou outra falácia qualquer é porque o resto do planeta esqueceu de cuidar do próprio quintal, destruindo-o sem legar bem à humanidade.

A quem interessar, a letra, heróica como toda saga:

"Era uma vez na Amazônia, a mais bonita floresta/Mata verde, céu azul, a mais imensa floresta/No fundo d'água as Iaras, caboclo, lendas e mágoas/E os rios puxando as águas/Papagaios, periquitos, cuidavam de suas cores/Os peixes singrando os rios, curumins cheios de amores/Sorria o Jurupari, uirapuru, seu provir/Era fauna, flora, frutos e flores/Toda mata tem caipora para a mata vigiar/Veio caipora de fora para a mata definhar/E trouxe dragão-de-ferro pra comer muita madeira/E trouxe em estilo gigante pra acabar com a capoeira/Fizeram logo um projeto, sem ninguém testemunhar/Pra o dragão cortar madeira e toda mata derrubar/Se a floresta, meu amigo, tivesse pé pra andar, eu garanto, meu amigo, o perigo não tinha ficado lá/O que se corta em segundos gasta tempo pra vingar/E o fruto que dá no cacho pra gente se alimentar?/Depois tem o passarinho, tem o ninho, tem o ar/Igarapé, rio abaixo, tem riacho e esse rio que é um mar/Mas o dragão continua a floresta devorar/E quem habita essa mata pra onde vai se mudar?/Corre índio, seringueiro, preguiça, tamanduá/Tartaruga, pé ligeiro, corre-corre tribo dos Kamaiurá/No lugar que havia mata, hoje há perseguição/Grileiro mata posseiro só pra lhe roubar seu chão/Castanheiro, seringueiro já viraram até peão/Afora os que já morreram como ave de arribação/Zé de Nana tá de prova/Naquele lugar tem cova, gente enterrada no chão/ Pois mataram índio, que matou grileiro, que matou posseiro, disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro roubou seu lugar/Foi então que um violeiro, chegando na região, ficou tão penalizado e escreveu esta canção/E talvez desesperado com tanta devastação/Pegou a primeira estrada sem rumo, sem direção/Com os olhos cheios de água, sumiu levando essa mágoa dentro do seu coração/Aqui termino essa história, para gente de valor/Pra gente que tem memória, muita crença, muito amor/Pra defender o que ainda resta, sem rodeio, sem aresta/Era uma vez uma floresta na Linha do Equador."

De Cantoria 1 [Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai].

Nenhum comentário:

Postar um comentário